Kaleidoscópio, Altamente Rock


O blog Limonada Hippie traz dessa vez uma incrível viagem da nossa máquina do tempo, diretamente para os 70's e especificamente, para o primeiro programa de rádio voltado para o rock no Brasil.

A história é verídica e os personagens estão aqui nesse mundo para contar a história e seu desfecho surpreendente.

Por Luiz Domingues:

Kaleidoscópio, Altamente Rock

Claro & escuro; calor & frio; positivo & negativo; Yin & yang...no mundo das dualidades, os opostos convivem, às vezes não harmônicamente, mas convivem.

Estávamos numa Era de desbunde pós-Flower Power que contrastava com a extrema repressão da ditadura de direita.

Flores, cabelos compridos, cores e sons deviam incomodar os que queriam dominar pela força, coturno, aspereza e voz de comando.

Era nesse contexto de realidades antagônicas que vivia-se o ano de 1975 no Brasil e uma inesperada luz apareceu de forma inusitada, dentro de uma estação de Rádio AM, controlada por padres católicos.

Nas ondas da Rádio América AM de São Paulo, uma obscura estação perdida no dial das rádios paulistanas, foi que surgiu o programa "Kaleidoscópio", um verdadeiro oásis cultural, difundindo Rock, MPB, Teatro, Literatura, Cinema e qualquer manifestação artística coadunada com as forças aquarianas que estavam sendo duramente combalidas pelo cinza do baixo astral político, que o Brasil vivia à época.

Seu apresentador era um cara chamado Jacques, que logo ficou conhecido pela alcunha de Jacques Kaleidoscópio.

Extremamente carismático e antenado, o Jacques cativava o ouvinte freak, levando informação, entrevistas transadas, música da melhor qualidade e à medida que o programa foi ganhando audiência, criando quadros fixos e noites especiais dedicadas à um tema único.

Quem não se lembra da "Teacher", uma garota de voz sensual que lia traduções de músicas ? Ainda me lembro de In My Time of Dying do Led Zeppelin e July Morning do Uriah Heep, nessas noitadas elucidativas...

E quanto às históricas noites de sextas de lua cheia, onde aconteciam os especiais de Blues ?

Na base do boca-a-boca, artistas foram divulgando e buscando a sua divulgação no programa. Passou a ser comum, atores que acabavam de encenar seus espetáculos nos teatros da cidade, correrem à Rádio América e fazerem a divulgação de suas peças.

Músicos apareciam toda noite e o Jacques lançou muito material até de quem ainda não tinha um disco formalmente gravado.

 Foi lá que ouvi Maytrea e Silvelena (nosso amigo Zé Brasil e Silvia Helena, lideres do Apokalypsis), Bendegó, Papa Poluição,Tuca, Luli & Lucina...

O Terço lançou o LP Casa Encantada e foi no Kaleidoscópio que ouvi o disco pela primeira vez. O mesmo com Revolver do Walter Franco e Snegs do Som Nosso de Cada Dia.

Noites de Rock Progressivo inesquecíveis...a nata do prog italiano, o krautrock germânico...

A MPB de máxima qualidade. Jacques tocava coisas do Chico, Gil e Caetano que as outras rádios não tocavam e um monte de novos artistas da safra da metade dos anos setenta, talentosos como Ednardo, Belchior, Fagner...

A abertura era um choque térmico para o ouvinte incauto daquela estação. De-repente, após uma música qualquer, eis que surgia Massavilha do Som Nosso de Cada Dia, com seu solo de Moog hipnótico, pilotado pelo saudoso Manito, anunciando : Chegou o som altamente transado !

Um dos grandes méritos do Jacques, era o tom de sua locução, quase que falando ao ouvinte como se fosse seu melhor amigo. Essa sensação de cumplicidade, fraternidade, tinha tudo a ver com o espírito hippie de compartilhamento, sem mesquinharias, sem distanciamentos.

E era justamente nessa capacidade de transmitir essa energia que se coadunava com os ventos Woodstockianos que ainda sopravam pela terra tupiniquim, que cativava os ouvintes fazendo deles, companheiros de uma jornada.

Quem ouvia o Kaleidoscópio pelas madrugadas geladas paulistanas, sentia-se irmanado, integrado numa mesma vibração e isso é uma sensação extremamente difícil de ser explicada para os jovens de hoje em dia, em termos semânticos. A semiótica tropeça na impossibilidade de passar a verdadeira sensação que tínhamos nessa experiência radiofônica.

Outro tema que era muito usado como vinheta, era "House of the King", do Focus.

A gíria "altamente", era usada pelo Jacques em profusão. Mais que uma expressão, designava uma gama de sentimentos. "Altamente" era Alta Mente, como teria dito o Walter Franco.

O final era extremamente mágico. Quase batendo na hora de acabar, 2:00 h da manhã, com a Lua brilhando e o frio rasgando os ossos, o Jacques colocava o trecho final da magistral obra de Mike Oldfield : "Tubullar Bells"...

Quem conhece bem esse disco, sabe que se trata de uma obra conceitual, que ocupa o LP inteiro e no seu trecho final, num looping hipnotizante, o Oldfield vai anunciando a entrada de cada instrumento (literalmente, como um locutor), fazendo a mesma frase (belíssima !!), um verdadeiro mantra. Tal como o Bolero de Ravel, a música te hipnotiza e vai te levando num transe e a cada instrumento, num crescente, vai te envolvendo.

Espertamente, o Jacques usava essa trilha como encerramento, quase um ritual xamânico. Improvisando palavras de extrema positividade, deixava o ouvinte em estado de percepção alterado, alfa.

O programa durou até 1976 na Rádio América e depois migrou para a Rádio Excelsior, mas a despeito de ser "A Máquina do Som" e identificado com o público jovem, desde os anos sessenta, na Excelsior o élan foi se diluindo, infelizmente.

A minha experiência pessoal com o Kaleidoscópio também foi de extrema importância na minha formação como Rocker e certamente foi um dos fatores que influenciaram-me na minha decisão de me tornar músico e aspirar uma carreira artística.

Foi num dia de maio de 1975 que um freak amigo da escola me abordou e disse que descobrira um programa de rádio que só tocava altos sons e era apresentado por um Hippie com mil papos incríveis.

Não acreditei em princípio e piorou quando me disse que era numa estação AM careta, que geralmente dedicava o seu espaço à música popularesca e programação religiosa. Mas era verdade...

No dia seguinte, falei para o colega freak que tinha ouvido e estava boquiaberto com a descoberta. Dali em diante, passei apuros para acompanhar as entediantes aulas matinais da 7ª série. Entre 1975 e 1976, estudei sonado todos os dias e era duro prestar atenção nas aulas de Educação Moral e Cívica, após ter passado a madrugada ouvindo Jimi Hendrix...

Em tempos de internet e You Tube, isso soa como algo extremamente ingênuo, mas a verdade era : Em 1975, não tínhamos acesso à nada, tanto pela falta de tecnologia, quanto pela questão da ditadura coibindo, cerceando, censurando tudo e a todos.

Portanto, ter uma revista como a "Rock, a História e a Glória", sendo vendida em bancas de jornais e ouvir o Kaleidoscópio nas madrugadas, tinha um valor extraordinário para nós, Rockers, Freaks & Hippies tupiniquins...

Passaram-se muitos anos e o Jacques sumiu. Mas quem viveu a época, lembrava-se com extremo carinho e nas rodinhas, sempre alguém contava alguma vivência pessoal sobre o Kaleidoscópio e o questionamento : Por anda o Jacques ?

Assim que surgiu a Revista Poeira Zine, encantei-me pelo seu poder de resgate, pesquisa e sobretudo pela paixão com que o seu editor , Bento Araújo, escrevia suas matérias. Identificava no seu estilo jornalístico, a mesma redação que lia na velha "Rock, a História e a Glória".

Fiquei amigo do Bento e um entusiasta de sua revista. E claro, informalmente lhe dei sugestões de pauta. Numa dessas, falei sobre o Kaleidoscópio.

Para a minha surpresa, recebo num dia de 2005, o telefonema do Bento, convidando-me para entrevistar o Jacques em pessoa ! Num trabalho de investigação minuscioso, ele o encontrara vivendo em Pernambuco.

E foi assim que nos encontramos num restaurante próximo à Av. Paulista, aqui em São Paulo e mediante a liberdade que o Bento outorgou-me, munido de meu questionário básico.

A matéria foi publicada na edição n°10 (Thin Lizzy na capa), para minha satisfação e orgulho. No mesmo dia, saí desse almoço e fui ao Teatro do Sesc Pompéia prestigiar o Lingua de Trapo que lançava o Box Set com toda a sua discografia reunida. No camarim, disse ao Laert Sarrumor que havia entrevistado o Jacques e ele me autorizara a lhe ceder o seu n° de celular. Fã incondicional do Kaleidoscópio, o Laert vibrou e daí materializou-se uma entrevista do Jacques no programa Rádio Matraca, produzido e apresentado pelo próprio Laert, na Rádio USP FM.

Em abril de 2006, tive o prazer de participar dessa entrevista histórica, acompanhado de Bento Araújo, da fotógrafa Grace Lagôa e o Jacques, que estava sendo ciceroneado pelo Zé Brasil da banda Apokalypsis, outro que            trabalhou fortemente por esse resgate. Ao final, o Laert Sarrumor e sua co-apresentadora Alcione Sana, deram o microfone ao Jacques, que comandou uma micro edição do Kaleidoscópio, com direito à Massavilha, House of the King e Tubullar Bells fazendo o encerramento.

Quando encerrou-se, o Zé Brasil me olhou e com olhos marejados me disse que estava passando um filme na sua cabeça, com 1975 revivido. Caramba...eu e Laert também estávamos na mesma vibe ! Esse Jacques não havia perdido o jeito...

Foi uma noite...altamente !



Comentários

  1. Eu diria o seguinte: altamente massavilha o texto. E diria mais, Luiz Domingues é um sortudo.. rsrsrrs... Quando comecei meu site, A Barata, em 1997, andei escrevendo umas coisas sobre Kaleidoscópio, mas na época não se sabia nada sobre ele. A unica coisa é que estava em lugar incerto e não sabido. Um amigo (que aliás se faça justiça, é o autor do desenho que ilustra esta matéria) José Nogueira tinha uma gravações e eu escrevi um texto que ele ilustrou com o tal desenho. Depois fiquei sabendo que Jaques estava vivo e bem e tentei através das mesmas pessoas contatá-lo, mas não obtive êxito.
    De qualquer forma, parabéns, amigo Luiz Domingues pelo excelente e oportuno texto. E como se diz: faço das suas palavras as minhas, pois Kaleidoscópio foi uma espécie de curso de graduação em Rocker... Ah, apenas citando que os temas que marcaram a minha lembrança são, além dos citados por você: "Celebration" do PFM e The Wizzard do Sabbath... Que bom que nossas memórias ainda podem nos carregar à essas lembranças...

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    1. Que legal suas palavras, a memória compartilhada e o adendo sobre a ilustração, citando o autor da charge, que aliás lembrou-me claramente o Henfil pelos traços e intenção setentista.

      Verdade ! Havia muito pouca informação sobre o Kaleidoscópio até o Bento achar o Jaques e trazer à tona da boca do seu próprio criador, a estória dessa aventura Rocker setentista.

      Muito bem lembrado ! Celebration e Dulcissima Maria do PFM, tocaram muito, assim como The Wizard, do Black Sabbath. Outro disco que tocou muito foi o do Giles, Giles e McDonald, ex-membros da primeira formação do King Crimson.

      Obrigado pelo prestígio, elogios e por ajudar em importantes adendos. Eu fiquei feliz e a Fernanda, editora deste Blog deve estar, também !!

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    2. O Nogueira,conhecido por Zinerman, é um psicologo doido que mora em Ferraz de Vasconcelos e bem antes dessa matéria do Poeira, me mostrou uma gravação que tinha feito com o Jaques, era dos anos 90. Eu ouvi a gravação e ainda tenho uns trechos dela em mp3. E bem lembrado, Luiz Domingues, sobre McDonald And Giles, era mesmo presença obrigatória. E tinham outras.... Puxando minha sardinha pra brasa, há um capitulo sobre Kaleidoscópio na minha biografia que vou lançar mês que vem.

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    3. Maravilha, Barata ! Quanto mais informação sobre o Kaleidoscópio, mais resgatamos essa lembrança fantástica dos anos setenta. Seu livro trará adendos nesse sentido, sem dúvida.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Caramba, uma história e tanto... Naquela época eu ouvia a rádio Difusora e não perdia um programa da rádio Cultura, na voz de Marisa Leite de Barros (acho que este era o nome dela) chamado "Laboratório" onde contava um pouco da história das bandas de rock: Black Sabbath, Led Zeppelin, Pink Floyd e tantas outras... que saudades

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    1. Que legal que curtiu, Lourdes ! Realmente me lembro de Marisa Leite de Barros. Seu programa na TV Cultura era uma aula de inglês ao vivo, através de música. Ela traduzia, corrigia a pronúncia e fazia o público cantar até decorar. Minha lembrança mais remota recua até 1972, com esse programa. Mas não sei a data exata de seu início, na TV Cultura de São Paulo.

      Chamava-se : "Inglês com Música".

      Agora quanto ao programa "Laboratório", realmente não me lembro. É caso para pesquisar, então. Super legal esse seu adendo.

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    2. Pra quem se interessar, o perfil dela no Facebook: http://www.facebook.com/marisa.leitedebarros E esse programa da Cultura, lembro vagamente.

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