Máquina do tempo - Tropicália : Pão, Circo e Desbunde


Não existiu um movimento onde tentou-se definir melhor o Brasil, como a Tropicália. Na minha opinião foi a tentativa artística que melhor representou o nosso país e toda sua diversidade. Nossa máquina do tempo hoje, traz um riquíssimo texto de Luiz Domingues, retratando esse movimento que é motivo de muito orgulho para todos os brasileiros.


"Eu oriento o movimento, eu organizo o carnaval..."
 
A turbulência política que o Brasil vivia na metade dos anos sessenta, polarizou a música popular brasileira entre os estudantes universitários.
 
A rapazeada de esquerda, fechou com a ideia de que só tinha valor a produção musical 100 % engajada na questão ideológica e sendo assim, dá-lhe vaias em quem não compactuava com esses conceitos no auge dos festivais de MPB, principalmente os da TV Record de São Paulo.
 
Detestavam o que consideravam sub-arte imperialista e americanizada, Jovem Guarda, por exemplo, e também a MPB Velha Guarda, alheia aos temas políticos em sua temática.
 
Mas o mundo não girava apenas em torno de quem torcia pelo comunismo ou capitalismo e alheia à essa polarização da guerra fria, a contracultura comia solta, movimento Hippie explodindo, briga pelos direitos civis, feminismo e a arte POP entre tantas outras manifestações simultâneas, davam margem à novos paradigmas, muito além da luta de classes.
 
E nessa efervescência total e usando a oportunidade dos Festivais da TV Record, foi que surgiu para o grande público, um grupo de artistas antenados nessa vanguarda estética.
 
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, Os Mutantes, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinan, Nara Leão e outros que posteriormente aderiram, formavam a comissão de frente desse novo movimento, que foi batizado como "Tropicalista".
 
Qual era o mote ? Tudo...  
 
Resgatando o conceito de Osvald de Andrade, em relação à "antropofagia", os tropicalistas propunham digerir todas as influências modernas e antigas e regurgitá-las sem pudores.
 
Com a sólida base da MPB via Bossa Nova, com Nara Leão e Caetano Veloso, principalmente e as influências nordestinas de Gilberto Gil, uniram-se ao Rock como jamais outros artistas da MPB tinham feito de forma aberta, quando se encontraram com os argentinos do Beat Boys e os paulistanos de Os Mutantes.
 
Nesse sublime encontro da queixada de burro com o violão de harmonizações jazzísticas sofisticadas, acrescentaram a banda de Rock, com a distorção da guitarra, o baixo elétrico e a bateria com pegada forte. 
 
Isso sem contar o acréscimo avant-garde das orquestrações de Rogério Duprat, dando o toque de experimentalismo, que Tom Zé também traria, com sua desinibição para chocar.
 
Vestidos como Hippies, coloridíssimos e ostentando longas cabeleiras, estavam coadunados com San Francisco e Londres de 1967, numa condição de igualdade inédita para os padrões de Pindorama.
 
E mais uma marca registrada : o resgate da velha MPB, misturando-se à toda a modernidade, sem nenhuma discriminação, muito pelo contrário, em tom de exaltação.
 
No caso de ter gravado a canção "Coração Materno", do cantor da velha guarda, Vicente Celestino, por exemplo, Caetano queria "complexicar os critérios críticos", conforme costuma dizer, rompendo o conceito do que é "bom ou ruim" na MPB, em opiniões formatadas e paradigmatizadas.
 
O LP coletivo, "Tropicália ou Panis Et Circencis" é um exemplo de toda essa manifestação efervescente, onde Chacrinha e Andy Warhol eram tratados com a devida igualdade. Jimi Hendrix, Beatles, João Gilberto e Jackson do Pandeiro, pipocavam juntos na panela antropofágica, com a imagem de Carmem Miranda com um cesto de frutas à cabeça, que poderia ser tranquilamente uma Hippie de Haight-Ashbury, com um LP do Silvio Caldas debaixo do braço...  
 
Em 1968, os Tropicalistas foram parar na TV. Com um programa semanal na TV Tupi, promoveram uma verdadeira loucura sonora/visual/estética e comportamental que foi demais para os senhores censores da ditadura. Pressionada, a TV Tupi teve que tirar do ar aquele bando de doidos para total azar de quem estava antenado nessa vibração libertária.
 
E como toda essa loucura era demais para a época que o Brasil atravessava, a repressão tratou de se livrar de seus dois principais articuladores, convidando assim, Caetano e Gil a saírem do país, num dos atos mais tristes cometidos contra a cultura. 
 
O movimento dispersou-se, mas o espírito libertário, não, com todos os envolvidos continuando a produzir, seguindo suas carreiras.
 
Apesar do exílio, Caetano e Gil continuaram com tudo e em 1972, mesmo com o Brasil vivendo uma barra pesada na política, eles estariam de volta e com força total.
 
Fora Gal Costa e Tom Zé que acharam seu espaço na música mainstream, Os Mutantes engatilharam carreira vitoriosa, etc.
 
Pode-se atribuir ao movimento tropicalista, como uma continuidade lógica do conceito, além do LP "Tropicália ou Panis Et Circensis", os primeiros trabalhos individuais de Caetano,Gil, Gal e Tom Zé e certamente os dois primeiros Lp's dos Mutantes.
 
Recentemente, sob direção de Marcelo Machado, foi produzido o documentário "Tropicália", com entrevistas de diversos personagens do movimento, mais imagens inéditas da época.
   
O cinema tem sido generoso e multiplicam-se documentários interessantes sobre a produção artística e cultural dos anos sessenta e setenta. Hora de prestigiarmos essa produção audio-visual que resgata o tesouro artístico nacional. E certamente é o caso desse ótimo documentário.
 
Afinal de contas, "quem não se comunica, se estrumbica", como dizia o velho guerreiro, balançando a pança...
 
Aquele abraço !!

Comentários

  1. Um belo resumo sobre este movimento que felizmente ainda persiste. Uma análise mais ampla renderia páginas e páginas neste blog, Quem se habilita? Meus parabéns Luiz Domingues

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito bacana que reconheça resquícios desse movimento ainda atuantes em 2012, Vinicio.

      Obrigado por ler e comentar !

      Excluir
  2. Como é bom ler sobre a Tropicália, me faz ter orgulho de ser brasileira novamente.
    Adorei o texto Luiz e a maneira que tu escreves sobre o Tom Zé ficou especial para mim que sou fã! bjs, valeu!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Krys !

      Verdade, um movimento ousado e pleno de substância artística, estética, intelectual e comportamental com foi o tropicalismo, nos enche de orgulho, mesmo.

      Obrigado por ler, comentar e elogiar !

      Beijo !

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Maldita! (A história da rádio Fluminense FM).

Conhecendo a nossa história musical: Entrevista com Rubão Sabino - Por Luiz Domingues

Máquina do tempo - Revista Som Três